quinta-feira, 1 de novembro de 2007

O intransponível...

Foto: Lucas Gaspar

Aquela cidade a tirava de si tantas vezes que nem sabia mais quem era, cada retorno era uma composição inefável de tantos encontros e desencontros que já não ousava querer nada, apenas contemplava as ruas e os primeiros habitantes que saiam para a faina cotidiana.
Atravessava as madrugadas há muitos anos em busca de palavras. Mas tinha dias em que elas não lhe diziam nada. As pessoas ao seu redor pareciam usá-las sem pensar que carregavam significados. Nela existiam muitas vidas reveladas, o que só lhe restava arrumar mais uma vez a bagagem e de novo partir, mas já não conseguia sair do lugar, tinha se perdido da ponta do novelo que a tinha levado até aquele lugar. Nada sabia sobre o que poderia vir de quem quer que fosse, mas mesmo assim seguia obstinada, só não sabia para onde. Apesar de ter aprendido a ler a vida, sempre a espantavam os sentimentos humanos, e sozinha ela envelhecia olhando a vida debruçada na janela, contemplando as ruas pelas quais tantas vezes tinha passado leve e feliz.
Entre os fios da lembrança ia tecendo sua existência. Parecia que as linhas da vida se entrelaçavam e o que vivia, sentia e esquecia iam compondo um tecido às vezes indecifrável: um emaranhado de fios que buscavam formar algo definido, mas sempre revestido em um novelo de indeterminação.
Envolta nas noites frias tateava o medo, tentava segurar o mundo pelo o que dele lembrava, tentando não ser somente um corpo esquecido no canto de uma mente ausente ou desconhecida. Os lugares pelos quais tinha passado se desenhavam em imagens de mares, montanhas, e pelo esquecimento das horas... rostos que a seguiam, e se transfiguravam como um porto numa cidade sem mar, olhos que já não via, distâncias que a separam daquilo que não tinha sido... mas ela queria mesmo ser? Como um corpo tatuado de lembranças olhava para a vida, mirando em cada rosto não somente o que se deixa ver, mas desenhando as imagens que foram se compondo em seus anos. Era como se a cada encontro, cada ser que tinha chegado tivesse rasurado o que não tinha conseguido compor, era como que um rascunho de tantas mãos, reinscrita várias vezes e redescoberta todos os dias como um livro que fica guardado e se alegra toda vez que mãos desconhecidas o tocam.As imagens das ruas, o contorno das lembranças, os rostos se misturavam e assim ia compondo a cidade invisível do que tinha se tornado, por detrás das montanhas.
Entre os chamados e os silêncios que escutava, entre os encontros que teve e aqueles que escorreram sorrateiramente debaixo de seus olhos, já não encontrava muito, talvez os rastros de sua própria viagem feita diante da solidão. Ela envelhecia naquela cidade que tinha escolhido morar, mas ainda fiava sonhos e diante do instante entrançava os cabelos em devaneios e ilusões ... Uma vida dedicada às memórias do que talvez nunca tivesse existido. Mesmo que os dias passassem e os silêncios se confirmassem, ela soprava impetuosamente as chamas do vivido... como se isso a refizesse, como se dos sopros pudesse ainda recuperar os anos que tinham ido e deixado somente as rugas do tempo em seu rosto. Seus cabelos cresciam, tão longos quanto os abismo que os separavam...
Sua vida era os riscos que tinha corrido, o que não tinha encontrado, a viagem feita e a solidão de não ter ninguém esperando, escritura de letras vivas e outras que já se apagavam...
Montanhas não foram feitas para saírem do lugar, aos poucos precisou aprender a desatar os nós e os sonhos... Sonhos que insistiam em se juntar um a um, enfeitando-lhe os cabelos, ou teria sido ela que com as próprias mãos tecia nós e enlinhavava sonhos?


Um comentário:

Chris disse...

Lindos os últimos posts!
E aí querida, tudo pronto pra viagem?!
Beijos!