domingo, 23 de dezembro de 2007

Borboleta Menina...




Para Ana Maria Peçanha (Paris 23 de dezembro 2007).
Ela todos os dias fazia o mesmo percurso, entrava no trem e seguia no rumo descrito no bilhete, mas de alguma maneira, sua alma desejava seguir para além daquele percurso...
Da janela de seu vagão, ela ia contemplando a paisagem e desenhava em papéis da alma esse jogo de encantamentos que no fundo é o que nos permite seguir vivendo ... e nesses quase sonhos ela se imaginava indo para países distantes, se imaginava usando outras máscaras, mudando de face e sentimentos nessa brincadeira de ser só a si mesma...
Mas, o que ela gostava mesmo era de imaginar que era uma borboleta, sim, uma dessas alegres e saltitantes, que sobrevoam jardins diversos e não tem tempo nem hora para borboletear...
Imaginou tanto que um dia, de repente, uma dessas coloridas pousou na janela do trem e perguntou:
- Bom dia menina, para onde você está indo?
Ela aturdida, respondeu... que não sabia....
E a borboleta tornou a perguntar:
- Como não sabia para onde estava indo, ela não poderia acreditar nisso, ao seguir numa direção não era preciso um mínimo roteiro? ou com os humanos era diferente?
Ela como borboleta sabia que todos os dias teria que renovar suas cores, encontrar belas rosas para conversar e passear no maior número de jardins que ela pudesse....pois, era esse o ofício da sua espécie...
A menina olhava a borboleta, que se balançava toda enquanto falava...e esta continuou:
- Você não vai me dizer mesmo para onde está indo?
Perguntou a borboleta curiosa.
A menina respondeu...
- que estava indo para a escola, tinha que cumprir horários, uma agenda semanal...fazer provas, assistir aulas, submeter-se à vontades alheias e almas ranzinzas, mas que andava bem cansada... de aprender letras e números quando o que queria mesmo era poder sair para longos passeios, sobretudo nesses dias em que sua alma pedia certos encantamentos...
A borboleta então a convidou para ir à sua casa... Mas ela precisaria encolher... para poder entrar e também precisaria aprender a voar...
A menina não pensou duas vezes, não sabia como isso iria acontecer, mas aceitou de imediato. Ora, tudo o que ela queria era ter uma manhã diferente, e não ter que ficar só indo e vindo no seu trem ... Esta parecia uma boa maneira para começar...
De repente ela se viu... num jardim muito grande e bonito, parecia a casa da sua avó, cheio de rosas e de milhares de borboletas e cada uma parecia mais bonita que a outra... e alvoroçadas todas cumprimentava a ilustre visitante...
A menina Ana, deu-se conta de que era do tamanho das novas amigas... e todas queriam saber como era seu mundo... o que ela fazia... e o que tinha para contá-las....
A menina começou a lhes falar de tudo o que acontecia no percurso de sua viagem, todos os dias trem .... e as borboletas estavam encantadas com a descrição, com os detalhes que a menina dava... e esta por sua vez, começou a se dar conta do tanto de coisas que acontecia no seu caminho...enquanto ela apenas encostava a cabeça na janela e se deixava viajar....
Seu cotidiano não era tão banal quanto ela imaginava...
Ela também tinha ainda suas cores e sua beleza...
Ela, ao longe ouviu uma voz perguntando - era uma das borboletas menores -
uma borboleta menina...
- mas porque você anda sempre de trem, você não sabe voar?
Começou a explicar a pequena, como se fosse gente grande:
Aqui, no nosso mundo, nós aprendemos desde cedo... e temos que fazer isso com delicadeza para fazer nossos pousos nas pétalas das rosas e não machucá-las.... não é o mesmo para vocês?
A menina disse que não... que os humanos tinham inventado várias coisas, entre elas o trem, o avião... para fazê-los chegar mais perto das outras pessoas, realizar suas viagens.... mas não sabiam voar....
A borboleta respondeu:
- Se você quiser aprender, nós podemos ensiná-la...
Abriram caminho, para que pudessem ter espaço para alçar vôo e ao som da contagem regressiva de uma das borboletas, elas correram todas juntas pelo lindo e grandioso jardim, em várias cores e tamanhos, as borboletas e a menina...
e voaram... longe...livres...
O vento soprava forte, era quase inverno ... e aos poucos uma sensação de brisa forte no rosto,
cheiro de rosas no ar e pensamentos leves...
a menina voava...
Abriu os olhos, esboçou um sorriso, sua estação era a próxima...
Logo, chegaria ao seu destino...
O trem, ela e sua alma de borboleta...


Paris 23 de Dezembro de 2007/



domingo, 16 de dezembro de 2007

Meninices...


Poema do Menino Jesus

Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu tudo era falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque nem era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E que nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu no primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar para o chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que ele as criou, do que duvido." -
"Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontado.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos dos muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam ?

Alberto Caeiro

Árvores e o Tempo...

Olhei pela janela e diante dela... e da ausência das folhas nas árvores, notei que os pinheiros ali estão, verdes, fortes e resistentes diante da passagem do tempo... trazendo-me beleza para além do que os olhos podem ver... os pensamentos se soltam e brincam com as saudades... e como já disseram mesmo diante da dura realidade prefiro o delírio... prefiro
os sonhos...
a vertigem ...
de seguir vivendo como se não fosse a mesma... como se o tempo mesmo não existisse...
afinal, como disse Guimarães Rosa, no seu exílio no grande sertão da vida ... talvez nem a gente mesmo seja de verdade...










domingo, 9 de dezembro de 2007

Est(a)ções....

Entre tantas coisas por dizer já não conseguia dizer nada, parecia ser apenas um murmúrio como o do vento, enquanto gotas de chuva caiam molhando as ruas....
Existia em si algo que beirava à loucura, mas que contornava um encanto ainda com as coisas miradas, os rostos desejados....
Mas sabia não era tão forte para sustentar o peso do seu próprio rosto nas mãos, não conseguia ser somente inteira, queria o direito de também ser pedaços....
Por que teria que ter verdades, dar seguranças e ser forte? não, em si latejava os excessos de como sentia o mundo, e ele a assombrava.
Em si, construia imagens e desvelava sonhos, os versos se perdiam no emaranhado de pensamentos que soltava pela janela.
O quarto aquecido não reconfortava a alma.
Ao deitar uma infinidade de seres sobrevoavam a cama, cheiros de lugares, vôos de borboletas contemplados nos jardins por onde passara, ipês rosas que acariciavam a imaginação, "horas de tantas pessoas"... e essas imagens que concatenavam um universo disperso de si...
Se fosse traçar a sua própria autobiografia, diria que era algo entre a busca por palavras perdidas, encontradas e esquecidas, e que só sabia ser: sendo!
tudo e de certa maneira nada, de certa maneira, pois não saberia traduzí-lo.
Suas inquietações pareciam não terem o direito de serem reveladas de tão íntimas que eram.... mas o que teria a revelar? além do próprio segredo que era para si mesma.
Nada preencheria esse vazio, mas também havia em si lugar para os encantos e surpresas... mas carregava essa lacuna inabitada por palavras.
Depois que o sol havia dado lugar a essa estação até então desconhecida, via as folhas caindo uma a uma diante de si e com elas adornava o tempo, as horas, as esperas... enquanto ia se consumindo e se desfazendo em imagens... como se rostos se transfigurassem e nem mesmo soubesse se poderia ser contemplada num espelho ou num olhar...chuvas brotavam em seu rosto, e lá fora, como dentro de si, o inverno chegava.