segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Entre espelhos velados: brincando com reflexos




Revista Espaço Acadêmico- N. 54 - Novembro 2005- Mensal ISSN: 1519 6186 ANO V

Entre espelhos velados:
brincando com reflexos

Uma de minhas insistentes súplicas a Deus e ao meu anjo da guarda era não sonhar com espelhos. Sei que os vigiava com inquietação. Algumas vezes, receei que começassem a divergir da realidade; outras, ver meu rosto neles desfigurado por adversidades estranhas. Soube que esse temor está, outra vez, prodigiosamente no mundo.
Jorge Luis Borges

Escrevemos para criar outros mundos, reinventando lugares e errâncias. Mas como se pode engajar toda a existência na inquietude de pôr em ordem um certo número de palavras? Pergunta-nos Maurice Blanchot (apud COSTA LIMA, 1993: 39). Talvez pelo nomadismo que possibilita nossa existência, que em sua própria etimologia invoca um sair de si. Somos pássaros migrantes, sempre em fuga diante de tudo o que nos impeça de voar. Mesmo que nossos pés precisem de um solo e, em alguns momentos nos acostumemos com os exílios, por neles encontrarmos alguma proteção, sonhamos com a aventura.


A metáfora do espelho, em Jorge Luis Borges (1899-1986), nos seus escritos sobre Os Espelhos e os Espelhos Velados, levam-nos pensar que diante de narrativas espelhadas é que vemos o mundo. Jogos de espelhos que se refletem nas palavras, que adormecem levemente sobre a superfície das coisas, no rosto de uma pessoa amada, num ideal, num desejo, enfim, na maneira de sermos e expressarmos nossa demasiada humanidade. Assim:


O cristal nos espreita. Se entre as quatro
Paredes do aposento há um espelho,
Não estou só. Há outro. Há o reflexo
Que arma na aurora um sigiloso teatro. (BORGES, 1987).


Talvez o nosso primeiro espelho velado seja o rosto amado, espelho no qual olhamos e nos confundimos com as nossas imagens e as do outro, olhar sempre à espreita, sempre em encanto e desamparo diante do que há por vir. Não há palavras que nos protejam desse primeiro reflexo, as mãos se deparam vazias, sem bagagens ou garantias, só o abismo de um jogo de sombras e projeções. Depois descobrimos que esse rosto amado é só um rastro, que ora nos derruba com seus reflexos e imagens escorregadias, e ora nossas mãos somente acariciam, mas não podem conter. E quantos rostos (im) possíveis de serem contemplados, outros que nem temos mais como olhar, quantos que se despedaçam diante do espelho, quantos pedaços cortando as mãos e vagarosamente deitados na estrada, e que com o tempo já não machucam mais os pés. Quantos que ficarão somente na lembrança... Imagens veladas, que a cada dia desvelam e revelam um traço, um sorriso, a lembrança de uma voz, uma maneira de olhar, um jeito capturado pela contemplação, mas não pelas palavras. Uma cena diante da qual nunca verdadeiramente estivemos, “lugar inabitável” de nós mesmos.


Só o que nos atinge, marcando o corpo e a alma, é que nos faz na vida amados e amantes. Um brincar incessante com esses reflexos nossos e dos outros, cenas que nos embriagam, comovem. Depararmo-nos com o mundo nesse confronto incessante e intenso, entre o preenchimento das palavras e a fuga dos sentidos, nessa oscilação de similitudes e diferenças, é que torna possível a inscrição semântica da vida. Cada ser buscando as suas tintas, cada um sentindo a dor e a alegria das palavras, essas pequenas insígnias que tentam (re) velar o que intensamente somos, nomeando rostos, que ao mesmo tempo seduzem, envolvem e assustam.
Talvez no amor encontremos esse primeiro brincar de reflexos, um não-lugar de impressões fugidias. Espaço inabitável de coisas pequenas, jogo de espelhos velados, de imagens que se refletem e se cortejam. Como diz poeticamente Rubem Alves:
Amo, sim, mas não é bem a ti que eu amo. Amo uma outra coisa misteriosa, que não conheço, mas que me parece ver aflorar no teu rosto. Eu te amo porque no teu corpo um outro objeto se revela. Teu corpo é lagoa encantada onde reflexos nadam como peixes fugidios...Como Narciso, fico diante dele... (ALVES, 1996: 17).


Espelho que desvela nossa “insustentável leveza de ser”, fluidez que num instante é leve, mas que nos fere como lâmina, experimentação, ensaísmo da leveza diante de tudo aquilo que se torna pesado em nós. (CALVINO, 1990: 16). Estar diante do espelho é como fazer uma subtração de todo peso e retirá-lo “ora às figuras humanas, ora aos corpos celestes, ora às cidades”, talvez nos lembre a literatura que revela a vida em prosa e poesia e busca, “sobretudo (...) retirar peso à estrutura da narrativa e à linguagem”.(Idem, Ibidem: 15). Instante no qual podemos animar com vida as coisas viventes, a começar por nós, “contemplar o abismo, sem ser destruído por ele. Nas palavras de Rilke: conter a morte inteira docemente, sem nos tornar amargos”. (ALVES 1996: 97).


O espelho possibilita confrontos, desconcerta, desenha rasuras no rosto, impulsiona movimentos, provoca fluidez nesse “invólucro chamado corpo”, dentro do qual não passamos de “inquilinos solitários”. (NOLL, 1999:79). Quantos espelhos de palavras, de pessoas, de lugares, de coisas que não mais nos verão? Quantos reflexos não ousamos olhar? Imagens tantas que não puderam ser sentidas profundamente pelo olhar, tantos são os espelhos pelos quais passamos pela vida, em quantos e de que maneira ficamos? Presos como em um quadro ou moventes como as paisagens?
Borges parece ter invocado em sua escrita algumas imagens para refletir seus confrontos, entre eles: a espada, o labirinto, punhais, tigres, tabuleiros de xadrez, a cegueira, os espelhos, as máscaras. Elementos cortantes, ameaçadores, brumas diante de nossas certezas, objetos diante dos quais somos surpreendidos. O labirinto que embaralha toda e qualquer ordem ou solução; espelhos e máscaras que possibilitam a pluralidade icônica do que somos. Símbolos que se revelam como confrontos com alteridades, com tantos outros que vivem dentro e fora de nós mesmos, nesse labirinto chamado tempo.


A escrita talvez seja um desses reflexos do espelho, que também somos. Na escrita capturamos com o olhar, é como esculpir um rosto sempre (in) definido e em constante fuga, que exige mais do que imaginação, mas o laborioso trabalho do olhar. Borges era um autor voltado para a escritura, o que fazia com que os seus olhos fossem como uma outra pena diante da leitura, da poesia e da escrita. Deparar-se com a cegueira foi ter que perder esses regalos que somente os olhos percebem e podem adornar. Olhar obsessivo, minucioso[1] lapidando cada palavra, dando-lhe a (in) tensidade com que foram ditas pela primeira vez!


Os espelhos velados, do qual nos fala Borges, revelam os fragmentos que assombram o fantasma do uno, da palavra clara que tudo diz. Talvez as coisas e as pessoas não sejam mais do que aquilo que são, tanto nossas palavras quanto os nossos desejos não conseguem preencher os sentidos, que vagam como a brisa que sopra nos rostos, como não marcam as coisas que nos cercam, e dormem apenas como poeira fina sobre as folhas dos livros. Quimeras que mostram que nossa linguagem e nossas representações “não têm como valor mais do que a tênue ficção daquilo que representam”. (FOUCAULT, 1999: 66). Arriscamo-nos nas palavras, na escrita e nos desejos ao sabor da aventura, brincando com reflexos, acordando todas as manhãs e nada dizendo, apenas nos deparando com nossos espelhos velados, diante dos quais arde a aurora e ao mesmo tempo se escondem as sombras do que somos ou que sonhamos poder ser.
Que haja sonhos é raro, que haja espelhos,
Que o costumeiro e gasto repertório
De cada dia ilusório
Orbe profundo que urdem os reflexos (BORGES, 1987).
Como diz Ítalo Calvino (1990:16), quando o reino humano parece condenado ao peso é preciso encontrar caminhos para trazer-lhe de novo a leveza, não fazendo disso uma fuga para o sonho ou o irracional, mas é preciso: mudar de ponto de observação, considerar o mundo sob uma outra ótica, buscar outras lógicas, outros meios de conhecimento.
Diante do silêncio de uma imagem ou mesmo de uma sombra, “sem nome e sem rosto”, é que nos deparamos com o crepúsculo do que somos, rasgos de loucura em nossos quadros comodamente dispostos de similitudes. Os espelhos estão velados por não suportarmos olhar para eles, e por sabermos que eles podem projetar vários de nós que não caberiam num nome, num lugar ou numa representação? Diz o poeta João Gilberto Noll:
Absolutamente, não sei de quando nasci, nada, mas se quiser o meu nome busque na lembrança o que de mais instável lhe ocorrer. O meu nome de hoje poderá não me reconhecer amanhã. (...) não me pergunte (sic) pois idade, estado civil, local de nascimento, filiação, pegadas do passado, nada, nome também: não (NOLL, 1989: 9).
A loucura ronda os nossos reflexos pelo fato dos espelhos terem sido velados ou por que diante deles há o risco do fragmento, dos estilhaços nossos e de tantos outros refletidos em “tantas horas de pessoas”, de lugares, “tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado”, como intui Rosa (2001:200)? A loucura é esse chamado a sermos mais do que o que somos, a dizer mais do que o que sempre dizemos. Os espelhos velados usurpam o nosso reflexo, numa “perseguição mágica”, numa “memória poética” que ultrapassa a imagem refletida.
A partir de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, obra da qual Borges foi um leitor atento, há uma profunda relação entre a poesia e a loucura, visto que o louco aparece como um “desvio constituído e mantido”, na medida em que repete incansavelmente os “sinais da semelhança”, enquanto que o poeta aparece como aquele ser que reencontra “os parentescos subterrâneos das coisas e suas similitudes dispersadas”, ou melhor:
O poeta (...) sustenta o papel alegórico; sob a linguagem dos signos e sob o jogo de suas distinções bem determinadas, põe-se à escuta de ‘outra linguagem’, aquela, sem palavras nem discurso, da semelhança. O poeta faz chegar a similitude até os signos que a dizem, o louco carrega todos signos com uma semelhança que acaba por apagá-los. Assim, na orla exterior da nossa cultura e na proximidade maior de suas divisões essenciais, estão ambos nessa situação de ‘limite’ – postura marginal e silhueta profundamente arcaica – onde suas palavras encontram incessantemente seu poder de estranheza e o recurso de sua contestação. Entre eles abriu-se o espaço de um saber onde, por uma ruptura essencial no mundo ocidental, a questão não será mais a das similitudes, mas a das identidades e das diferenças. (FOUCAULT, 1999: 68).
Ambos percorrem a linguagem propiciando o seu desmoronamento ou a sua encenação numa distância incessantemente percorrida, mas jamais recoberta. Seguem os “passos lidos”, perdem-se, encontram-se neles e brincam com os reflexos da vida diante de seus espelhos velados por semelhanças e diferenças. A metáfora do espelho permite pensarmos as metáforas que criamos de nós, se é que as inventamos ainda! Como lembra Clarice Lispector, “antes do aparecimento do espelho a pessoa não conhecia o próprio rosto senão refletido nas águas de um lago. Depois de um certo tempo cada um é responsável pela cara que tem. Vou olhar agora a minha”. (LISPECTOR, 1998:33).

Referências
ALVES, Rubem. As razões do amor. In: O Retorno E Terno (Crônicas). 8ª ed. Campinas, SP: Papirus, - Speculum, 1996, p. 17.
ARAÚJO, Murilo Gun. Memorial J.L.Borges. Disponível em:
http://www.gun.com.br/borges/vida.htm. Acesso: 06 de nov. 2004.
BORGES, Jorge Luis. Os Espelhos Velados. In: O Fazedor. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1987.
CALVINO, Ítalo. A Leveza. In: Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.16.
COSTA LIMA, Luiz. Limites da Voz: Kafka. Rio de Janeiro: Rocco, 1993, p. 39.
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8ª.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 66.
LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
NOLL, João Gilberto. A Fúria do Corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1989, p. 9.
_________________. Canoas e Marolas. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999, p. 79.
ROSA, Guimarães. Grande Sertão: veredas. 19.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 200.
ZINGEREVITZ, Walter. Rascunhos Mentais. Cult: Revista Brasileira de Literatura, São Paulo, n. 25, agosto de 1999, p. 64.

1] Ver sobre isso: Trechos do Depoimento de Emir Rodríguez Monegal. ZINGEREVITZ, Walter. Rascunhos Mentais. Cult: Revista Brasileira de Literatura, São Paulo, n. 25, agosto de 1999, p. 64.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Bolsa Amarela

Rachel, personagem de Lygia Bojunga, um dia percebeu que tinha que encontrar um lugar para guardar as suas vontades, mas não as vontades que todo mundo pode ver e saber, para essas ela não ligava a mínima, tinha que ser para esconder dos olhos curiosos, as suas maiores vontades: a de crescer e deixar de ser criança, ter nascido garoto em vez de uma menina e a vontade de escrever. Tentou fugir, esconder-se delas, escapar dos rostos risonhos das pessoas que zombavam de suas curiosidades e de sua imaginação. Talvez, como Rachel, quantas vezes não temos que fugir de nossas vontades, entrar em conflito entre o que somos e o que esperam de nós? Esconder-nos do que somos para fugir dos olhos curiosos e dos dedos autoritários e recriminadores? Rachel procurou e encontrou um lugar para esconder suas vontades, alegrias e descobertas: a sua bolsa amarela. Mas, será que a bolsa amarela dela, serve para todo mundo? Claro que não. Cada um precisa encontrar sua própria bolsa amarela, sobretudo imaginária, para ter um lugar onde os sonhos sejam possíveis e o encantamento diante da vida, sejam válidos; Mesmo que tenhamos que ser gente grande, ter dias não tão alegres e nem muita vontade de sorrir, de sermos meninas ou meninos e que tenhamos vontade de escrever, de ser diferente, de seguir por outros caminhos. A bolsa de Rachel é o seu baú de espantos, onde ela guarda suas aventuras e conquistas de menina, onde ela guarda o brilho dos seus olhos e preserva o enigmático segredo da vida: a possibilidade de reencantar-se sempre ... ela diz:

“Comecei a pensar em tudo que eu ia esconder na bolsa amarela. Puxa vida, tava até parecendo o quintal da minha casa, com tanto esconderijo bom, que fecha, que estica, que é pequeno, que é grande. E tinha uma vantagem: a bolsa eu podia levar sempre a tiracolo, o quintal não.
Cheguei em casa e arrumei tudo que queria na bolsa amarela. Peguei os nomes que eu vinha juntando e botei no bolso sanfona. O bolso comprido eu deixei vazio, esperando uma coisa bem magra pra esconder lá dentro. No bolso bebê eu guardei um alfinete de fralda que eu tinha achado na rua, e no bolso de botão escondi uns retratos do quintal da minha casa, uns desenhos que eu tinha feito, e umas coisas que eu andava pensando. Abri um zipe escondi fundo minha vontade de crescer; fechei. Abri outro zíper; escondi mais fundo minha vontade de escrever; fechei. No outro bolso de botão espremi a vontade de ter nascido garoto (ela andava grande, foi um custo pro botão fechar).
Pronto! A arrumação tinha ficado legal. Minhas vontades tavam todas presas na bolsa amarela, ninguém mais ia ver a cara delas. ”
Bojunga, Lygia. A Bolsa Amarela. 33ª. Ed. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2005. P. 28-29;30-31)

terça-feira, 23 de junho de 2009

Lágrimas de Vidro


O rosto brilhante parece procurar nos ruídos do silêncio o sorriso que esqueceu...
Percorre os caminhos das lembranças como se fosse possível segurar na ponta dos dedos as horas e com eles compor nascentes dias...
As lágrimas correm como se de vidro fossem os olhos e se quebrassem ao mais sutil movimento...As mãos não tocam, os gestos não vêem só resta virar as páginas no enigmático contorno das letras e da vida...